Voluntários atendem mil por dia e devolvem visão a sertanejos na Bahia

Aos 80 anos, Maria Augusta pode voltar a cozinhar sozinha após a cirurgia de catarata (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Aos 80 anos, Maria Augusta pode voltar a cozinhar sozinha após a cirurgia de catarata (Foto: Adriano Oliveira/G1)

“Eu queria voltar a escolher o meu feijão.” Esse era o desejo simples, mas carregado de emoção, da dona de casa Maria Augusta de Jesus, de 80 anos, e que há pelo menos 20 enxergava com dificuldade por causa da catarata, doença que impedia a idosa de realizar tarefas simples como cozinhar e tomar banho sozinha.

Moradora de Condeúba (BA), Maria foi uma das mil pessoas operadas gratuitamente pelo projeto “Voluntários do Sertão”, no fim de abril deste ano. Durante uma semana, o G1 acompanhou todo o trabalho de 340 voluntários, distantes 1,3 mil quilômetros de Ribeirão Preto (SP), cidade-sede da organização.

Acompanhada de uma das filhas, a idosa aguardou um dia inteiro na fila à espera do procedimento que a faria enxergar novamente. Esperou pacientemente, à base de biscoito de polvilho e água, e depois de cinco minutos dentro da carreta de cirurgia, nem fome sentia mais.

“Deus seja louvado”, repetia Maria com os braços erguidos e um sorriso na boca. Depois, perguntou para um dos enfermeiros se, a partir da operação, poderia também abandonar os óculos. “É que eu gosto muito de fazer costura de mão, cuidar da minha casinha, quero poder voltar a fazer tudo isso”, afirmou.

Carro-chefe do projeto que leva atendimento médico gratuito ao sertão da Bahia, o serviço de oftalmologia é o mais procurado pela população – ele foi o primeiro a ser oferecido quando as caravanas de voluntários, que até 2006 levavam apenas brinquedos e alimentos ao nordeste, passaram a incluir atendimentos de saúde.

Na época, um centro cirúrgico improvisado foi montado em um dos quartos da família do empresário Doreedson Ribeiro Pereira – o Dorinho -, presidente e idealizador da organização “Voluntários do Sertão”. Em uma semana, 111 cirurgias de catarata e 500 consultas oftalmológicas foram realizadas gratuitamente à população de Alegre, distrito de Condeúba.

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Cirurgias de catarata foram realizadas em carreta adaptada: seis pacientes eram operados por vez (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Hoje, o complexo itinerante de atendimento oftalmológico conta com duas carretas, uma para consultas e outra para o centro cirúrgico, além de três tendas onde são realizados o cadastro, a triagem, alguns tipos de exames e a pré-consulta. Só este ano, quando o projeto comemora a 15ª edição, 5,3 mil pacientes foram beneficiados pelo serviço.

Todo o material utilizado no mutirão é oferecido por um instituto de olhos de São Paulo e o Sistema Único de Saúde (SUS) cobre os gastos com as cirurgias de catarata – incluindo a lente que é implantada no olho do paciente. Um investimento alto, cerca de R$ 643 mil, sem contabilizar o deslocamento das carretas da capital paulista até o sertão da Bahia e os geradores de energia usados para funcionamento dos equipamentos.

Os médicos trabalham voluntariamente, e em escala praticamente industrial. Uma cirurgia de catarata dura cerca de três minutos e as consultas, no máximo cinco. Por dia, foram atendidas aproximadamente mil pessoas, que aguardavam pacientemente em uma longa fila, formada ainda durante as madrugadas.

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Mesmo sob o sol forte, moradores não desistiam de esperar pelas consultas oftalmológicas em Condeúba (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Voltei a enxergar
Entre esses pacientes, esteve o lavrador Dionor Gusmão da Silva, de 59 anos, e que há pelo menos dez começou a perder a visão por causa da catarata. Analfabeto e sem condições financeiras para pagar um médico particular, Dionor procurou atendimento público em Vitória da Conquista (BA), a 162 quilômetros de Cordeiros (BA), onde mora. A consulta, porém, não foi um alento.

O oftalmologista lhe informou que o procedimento cirúrgico para resolver o problema custaria cerca de R$ 3 mil. Pelo sistema público de saúde, a espera poderia ser de até dois anos. Silva desistiu do tratamento. “Eu fazia tudo pelo tato. Se alguém ficasse na minha frente, eu não conseguia saber quem era. Só enxergava vulto”, contou.

Em abril, quando uma agente de saúde lhe contou sobre os atendimentos prestados pelo projeto “Voluntários do Sertão”, Silva não pensou duas vezes e se inscreveu para a caravana que sairia de Cordeiros com destino à cidade vizinha. Ele chegou à Condeúba ainda de madrugada e, após 12 horas de espera, ouviu o nome dele ser chamado para a carreta de cirurgia.

O resultado foi imediato e sem conseguir conter as lágrimas, Silva sorria emocionado por voltar enxergar, mesmo com apenas o olho direito – o esquerdo foi operado no dia seguinte. “Estou me sentindo um menino novo”, afirmou o lavrador, já fazendo planos de voltar à lavoura. “Quero cuidar da minha roça como sempre fiz. Foi Deus quem mandou esses médicos para salvar a gente.”

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‘Estou me sentindo um menino novo’, diz o lavrador Dionor da Silva, de 59 anos, após cirurgia de catarata (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Doenças crônicas
A oftalmologista Denise Leite explica que o alto número de atendimentos diários só é possível graças à estrutura montada pelo projeto. “A gente não trabalha sozinho. Existe uma pré-consulta, depois o paciente passa por exames que avaliam o fundo de olho. Temos um auxiliar no consultório que vai escrevendo o diagnóstico e a prescrição. Isso tudo nos permite trabalhar de forma ágil para conseguir atender toda a demanda”, diz.

Ainda segundo Denise, os principais diagnósticos no sertão baiano são de doenças crônicas, como glaucoma – lesão do nervo ótico que pode provocar cegueira – e pterígio – espécie de formação carnosa sobre a córnea. Além disso, a catarata – perda da transparência da lente natural dos olhos, o cristalino – também é bastante recorrente entre os moradores, já que a maioria é de idosos.

“A saúde pública em oftalmologia é precária porque é uma medicina elaborada, o custo é mais alto por causa de toda a estrutura. Além disso, essas doenças são silenciosas, não são descobertas sem acesso ao médico”, diz Denise, destacando que o mutirão consegue reduzir grande parte da demanda reprimida da região. “Essas pessoas jamais teriam acesso se não fosse dessa forma.”

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Pacientes passavam por exames e pré-consulta antes de serem direcionados ao atendimento oftalmológico (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Distribuição de óculos
Todos os pacientes que saem da clínica de oftalmologia e recebem receituário médico também podem retirar os medicamentos gratuitamente na farmácia da organização, montada em uma praça da cidade. Quando a prescrição é para o uso de óculos, eles também são fabricados e fornecidos sem custo aos pacientes, que ainda podem escolher o modelo.

Foi assim com o aposentado Elano Pereira de Farias, de 85 anos, que demorou quase 30 minutos para escolher a armação que mais lhe agradava. Elano passou pela cirurgia de catarata em 2008, quando os “Voluntários do Sertão” estiveram em Condeúba pela última vez. Agora em abril, voltou ao oftalmologista do projeto porque não conseguia enxergar de perto.

“A gente não tem condição de pagar nem pela consulta, quem dirá pagar pelos óculos. Esse movimento é uma beleza, salva a vida da gente”, disse o aposentado, que esteve na ótica acompanhado da filha, a cuidadora Otacília de Farias, de 59 anos. Ela também estava com receituário nas mãos e saiu do local contente com o novo par de óculos – um dos 2,4 mil distribuídos. “Antes, eu via tudo embaçado. Agora, vou poder ver minha novela direito.”

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O aposentado Elano de Farias, de 85 anos, e a filha Otacília, de 59, receberam óculos gratuitamente (Foto: Adriano Oliveira/G1)

Fonte: Adriano Oliveira G1 Ribeirão e Franca

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