Uma malformação na coluna, a cadeira de rodas como companheira constante e um problema nos testículos são incapazes de apagar o sorriso de Akauã Pataxó, de 12 anos.
O semblante do indígena, morador da Aldeia Coroa Vermelha, em Santa Cruz Cabrália (BA), concretiza o maior objetivo do “Voluntários do Sertão”, grupo de Ribeirão Preto (SP) que promoveu 40 mil atendimentos médicos gratuitos na região, entre 17 e 23 de abril.
Total que, se traduzido em recursos, representaria um investimento de R$ 10 milhões, próximo do orçamento anual da saúde no município, de R$ 12 milhões.
“Isso não tem preço. Muitos dos médicos não viriam aqui pelo dinheiro, mas estão pelo trabalho social e fazem mais do que na rotina deles. Você vê que o dinheiro não paga esse trabalho”, diz o empresário Doriedson Ribeiro Pereira, de 42 anos, fundador do projeto há 16 anos.
Esperança
A metros de Akauã, abordado por jornalistas ao lado do cruzeiro onde realizou-se a primeira missa do Brasil, em 1500, outros jovens sem o mesmo problema se revezavam em competições de arco e flecha nas areias da primeira praia visitada por Pedro Álvares Cabral, na chegada dos portugueses.
Entretanto, a esperança do jovem pataxó, noticiado de que faria uma cirurgia totalmente gratuita, após tentativas sem sucesso, sublimava as frustrações que ele e sua família tinham vivido até então.
“É um guerreiro, um menino forte. Em momento algum você vê o menino triste. Está sempre feliz, rindo. Isso dá força para nós enquanto povo, para resistir e contar nossas histórias”, afirma Taquaritina Pataxó, mãe do menino.
A alegria de pacientes como Akauã é invariavelmente a maior recompensa dos 400 pessoas, entre médicos, dentistas, enfermeiros e profissionais de diferentes áreas de suporte, que permaneceram no litoral sul da Bahia de maneira voluntária.
De acordo com os organizadores, enquanto toda a infraestrutura de atendimento – das carretas a remédios e equipamentos médicos – é obtida por doações de profissionais e empresas -, o município escolhido respondeu pela acolhida dos voluntários, com transporte e hospedagem.
O prefeito estima um gasto de R$ 200 mil como contrapartida pela recepção do projeto, valor pequeno perto do retorno. “Se fossemos bancar os serviços médicos que hoje estão sendo atendidos seriam milhões de reais”, afirma o prefeito de Cabrália, Jorge Monteiro Pontes (PT).
Santa Cruz Cabrália
Embora esteja a 20 quilômetros de um dos principais pontos turísticos do país, Porto Seguro (BA), e de ter atraído a seleção alemã de futebol na Copa do Mundo de 2014, a região de Santa Cruz Cabrália carece de equipamentos médicos gratuitos de média e alta complexidade, segundo Jerry Matalawê, coordenador do Distrito Sanitário Especial Indígena da Bahia (DSEI), órgão ligado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai).
A maior parte dos 28 mil habitantes – dos quais oito mil são indígenas, de acordo com a Prefeitura – ainda precisa, em casos específicos, remeter exames ou procurar consultas médicas em municípios maiores, como Eunápolis (BA). “Aqui na região temos uma dificuldade enorme dos serviços de saúde. Temos um hospital que carece de tudo”, diz Matalawê.
Consultar-se com um dentista, por exemplo, soa como artigo de luxo para moradores como Anderson Pedro da Silva, de 33 anos. A última vez foi há três anos para uma extração, afirma o segurança patrimonial. A espera terminou com a chegada dos Voluntários, que o ajudaram com uma cirurgia de canal.
“Aqui em Cabrália é muito carente e para um pai de família fazer um canal é muito difícil”, diz.
Silva foi um dos 2,2 mil atendimentos que movimentaram os 31 consultórios e 65 profissionais ligados à odontologia no projeto este ano. A cirurgia de canal foi um dos procedimentos de maior demanda, segundo o coordenador dos dentistas, Marcelo Alves.
Ele estima que, somente em materiais odontológicos utilizados no mutirão, foram R$ 50 mil. “Essa foi a maior ação da odontologia nos 16 anos de Voluntários do Sertão”, afirma.
Voluntário há seis anos ao lado da mulher, o dentista de Ribeirão Preto também levou, pela primeira vez, a filha, estudante de odontologia. “Começamos a trabalhar e nos identificamos. Isso é muito importante. Com isso começamos a vir e fomos nos engajando em outras partes do trabalho, não só vir e atender, mas também angariar doações”, afirma.
Na visão do fundador, a ação dos voluntários, em cada especialidade, é a maior riqueza do projeto. “Saber que não é só você, que tem pessoas que abraçam o projeto e compartilham os problemas que vem a acontecer, que tem muitas cabeças pensando ao mesmo tempo, você fica mais tranquilo. Nada melhor do que contribuir e compartilhar”, afirma Pereira.
Orientação civil
Especialidades não exclusivas à área médica e que chegam ao âmbito dos direitos civis. Além da oficialização de uniões estáveis, em paralelo aos procedimentos médicos, uma equipe de profissionais dedicou-se a orientar, sobretudo as populações indígenas, sobre benefícios previdenciários e questões de família.
Da Aldeia Coroa Vermelha, a artesã Jaturana, de 43 anos, soube, através do projeto, que pode ter uma série de direitos se deixar a informalidade.
“O índio que não mais está aldeado passou a ser um microempresário. A gente mostrou pra eles que eles podem pagar uma contribuição menor do que como autônomo. Todo mundo fica desconfiado, mas depois que as pessoas percebem que você está ali para fazer o bem isso tudo acaba desaparecendo e eles acabam se integrando”, afirma o advogado Hilário Bocchi Júnior, especialista em previdência, que atua pelos Voluntários há três anos.
Na espera dos atendimentos, ou em comunidades mais distantes, equipes também levaram palestras de orientação, principalmente para crianças e mulheres, em temas como violência doméstica.
“É algo muito mais amplo do que só a saúde do corpo, é o bem-estar proporcionado pela harmonia das relações”, afirma o juiz da Infância e Juventude de Ribeirão Preto, Paulo Gentile, que participa do projeto há quatro anos.
Fonte: G1
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