Uma enfermeira que voltou a andar após ficar tetraplégica. Um motorista que perdeu a perna em um acidente de caminhão e o filho em uma colisão de moto. Um pediatra que nasceu com uma malformação na coluna.
Sandra Ferro Cerci, Roberto Manoel de Mattos e Leandro Guimarães são de lugares distintos e têm dramas diferentes para contar, mas permanecem unidos pela mesma causa.
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Suas lutas conjugam-se no espírito solidário da caravana dos “Voluntários do Sertão”, projeto de Ribeirão Preto (SP) que em 2016 levou atendimentos médicos gratuitos em Santa Cruz Cabrália (BA). Durante uma semana em abril, o G1 acompanhou o trabalho do grupo. Sandra, Roberto e Leandro fazem parte das 400 pessoas que participaram da prestação de serviços no Sul da Bahia.
“Tem um Deus que vê tudo. Acredito que, se eu puder ajudar o próximo, tem uma recompensa. Sou um vitorioso, gosto de ajudar os outros. A vida continua”, afirma Mattos, de 61 anos.
A batalha pessoal do motorista, nascido em Cachoeiro de Itapemirim (ES) e morador de Eunápolis (BA) há 20 anos, resume-se em três perdas: a da perna direita, em um acidente de trânsito em 1984, a do único caminhão que tinha para trabalhar, em um assalto em 2010, e a do filho, morto aos 21 anos após um acidente de moto em 2012.
“Quase foi o fim. Minha esposa está em depressão até hoje. Estou aqui. Você tem que lutar, não pode abaixar a cabeça”, diz.
Tantos desafios, somados ao ganho mensal de apenas R$ 850 como autônomo com um veículo emprestado, não o impediram de se inscrever pela primeira vez como voluntário no projeto de Ribeirão Preto.
Por uma semana, ele atuou dando suporte à parte logística do grupo de profissionais paulista e sentiu realizado. “É muito prazeroso, gosto muito de ajudar as pessoas quando eu posso. É claro que também preciso, mas vejo que há pessoas que precisam um pouco mais.”
Lição de resiliência
Ver o quanto o drama alheio é maior do que o próprio é um dos principais significados do projeto para o ortopedista Leandro Guimarães, de 39 anos.
“Faz parte da construção da resiliência. Você vê que os problemas dos outros são bem maiores que os seus, você começa a tirar o foco de si e a focar nas outras pessoas”, afirma o médico de São Manuel (SP), que vive em Ribeirão Preto há 14 anos e participa do “Voluntários do Sertão” há quatro anos.
Guimarães ainda traz no corpo sequelas de um passado marcado por uma escoliose congênita cervical, cujo tratamento começou quando tinha apenas nove meses e só foi concluído aos 19 anos, após uma cirurgia sem precedentes no Brasil.
“Até hoje tenho dores, mas perto do que era hoje é ótimo. Eu tinha o pescoço completamente torto, hoje é ótimo. Ainda tenho muita dor cervical, muita irradiação nos braços, perco força, mas isso eu tiro de letra”, diz.
Também na infância, ele teve que lidar com um sopro incomum no coração e com sessões de cateterismo.
Guimarães acredita que ter convivido tanto tempo na dependência de médicos moldou suas escolhas profissionais e sua empatia com os pacientes. “Fica mais fácil quando se está no lugar deles. (…) Então você vai com mais jeito. Você pode tirar tudo de uma pessoa, mas nunca lhe tire a esperança, por pior que seja.”
Lição de esperança
A mesma esperança citada pelo ortopedista sintetiza a jornada da técnica em enfermagem Sandra Ferro Cerci, de 51 anos, desde uma tetraplegia dada como irreversível ainda quando ela tinha 21 anos até a fase final de sua reabilitação.
A moradora de Ribeirão Preto rompeu três vértebras na coluna ao se envolver em um acidente durante uma viagem de carro para a praia há 30 anos.
Movimentando apenas os olhos e a boca, foi dada como um caso perdido por médicos na época. Sua situação se agravou nos três meses de internação, quando contraiu uma infecção hospitalar na cabeça e foi dispensada “para morrer em casa”, como define Sandra.
Foi nessa fase que expressões como fé e determinação mais passaram a fazer sentido, sobretudo na figura de uma enfermeira que passou a atendê-la em casa e que a ajudou a se curar da infecção.
“Minha cabeça estava estourada. Essa enfermeira viu o curativo e disse assim: eu sou uma pessoa muito religiosa e quem vai te curar não são minhas mãos, são as mãos de Deus. Tenha fé, você acredita? Eu falei: acredito. Ela vinha duas vezes ao dia, rezava, abria o curativo, fazia raspagem e passava medicações no intuito de me ajudar. Um mês depois minha cabeça se fechou.”
Sem as feridas na cabeça, Sandra passou a dedicar-se à fisioterapia e a um mantra diário otimista. “Uma coisa que eu nunca parei de pensar nem um dia, eu só falava isso era que eu ia voltar a andar, repetia isso pra mim a todo o momento.”
Contra as expectativas até dos mais próximos, logo a hoje enfermeira começou a sentir um dos dedos no pé esquerdo. Em um processo lento de reabilitação, levou um ano para movimentar o lado esquerdo do corpo e mais cinco para recuperar a parte direita.
Sandra casou-se, teve dois filhos, mas, aos 40 anos, sentiu um vazio existencial, que acabou fazendo com que decidisse atuar como enfermeira. Para ela, sua vida só faria sentido dali em diante se fosse dedicada a ajudar o próximo.
Mais recentemente, concluiu um curso de serviço social, para ajudá-la em iniciativas como o “Voluntários do Sertão”, de que participa há três anos. Fazer parte da caravana é uma mistura de gratificação pessoal com a sensação de que seus problemas são pequenos perto das histórias testemunhadas na rotina do trabalho social.
“O dia que recebi a primeira convocação do Voluntários eu chorava como se tivesse ganhado na loteria. Era o que eu mais queria, faz parte dessa missão que tenho. Eu sempre fui muito limitada, as pessoas me limitaram por causa de minha deficiência. Quando vejo que, apesar de minha deficiência eu consigo fazer tudo que faço, e ainda vir para um lugar desses e atender esse monte de gente, eu entro em choque, porque minha deficiência não é nada aqui”, afirma.
Fonte: G1
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