No Ceará, a xenofobia veste branco

10203876(Este texto é dedicado ao Dr. Luiz Teixeira Neto e à memória do Dr. Caetano Ximenes de Aragão, dois médicos-poetas e humanistas, que muito me ensinaram da vida e da solidariedade).

Um choque profundo, uma sensação de mal-estar, uma vontade de vomitar… Algo me atingiu em cheio, acho que não no corpo, mas no espírito. Não posso precisar o que senti naquele momento, em que vi, pela TV, o constrangimento que alguns médicos cearenses infligiram aos aqui aportados médicos estrangeiros, em franca ação de hostilidade. Esses senhores, vestidos de branco, em nome dos seus interesses corporativos e econÿmicos, fizeram um espécie de “corredor polonês”, por onde os médicos estrangeiros, que vieram para trabalhar pela saúde da população, nos mais distantes e miseráveis rincões do país, foram obrigados a passar, entre vaias e xingamentos. Talvez o melhor termo para traduzir o que senti seja a palavra VERGONHA. Acreditem, fui acometido de uma profunda vergonha, ao ver um ato de tamanha hostilização e incivilidade acontecer na minha terra, sob a tutela do Sindicato dos Médicos do Ceará. Pensei comigo: chegamos ao fundo do poço!

Posso compreender toda a mística que se faz em torno do “Ceará Moleque” e do sentido cultural do uso da vaia, ao longo de toda a nossa história. Porém, se ser “Ceará Moleque” é vaiar médicos estrangeiros, afasto-me por inteiro de sua valia como modo de expressão, porque isto me cheira muito mais a xenofobia e a fascismo. Quanto ao significado deste ato, como ação política, podem os senhores sindicalistas ter a certeza de que atraíram para si o desprezo de milhões de cearenses e de brasileiros. Em todo canto deste imenso Brasil, nos últimos dias, não se comenta outra coisa, a não ser esta atitude vergonhosa.
Eu sou de um tempo em que os médicos eram conhecidos pela civilidade, pela erudição, pelo humanismo, pelo saber profundo que nascia de uma vocação, do ser e do construir-se na vida dentro de uma comunidade de destinos. A maioria destes médicos de boa cepa, pois, além de grandes profissionais, eram ainda homens que cultivavam as artes, que sabiam filosofia, que refletiam sobre a vida e o destino da humanidade, colocando a ética como um bem supremo.

Eram homens sábios, homens de tal grandeza, dos quais as comunidades se orgulhavam, chegando a nomear ruas e praças para que as futuras gerações deles se lembrassem, quando eles deixavam o nosso convívio. Quem na vida não conheceu um desses médicos, também escritores, poetas ou filósofos, com os seus ensinamento de caráter iniciático na vida e nas artes? Quem poderia imaginar um médico desta envergadura espiritual vaiando um colega estrangeiro, em um ato cheio de ódio e xenofobia? Impossível imaginar!

Mas o que acontece hoje? No Ceará, alguns médicos hostilizam, de forma escandalosa, estrangeiros com ameaças e xingamentos. É bem possível, que as universidades, sobretudo as universidade e faculdades particulares, fábricas de lucro e de técnicos destituídos de cultura e de humanismo, estejam produzindo estes “monstrinhos vestidos de branco”, analfabetos de qualquer humanismo, incapazes de ler a dimensão humana de um romance de Dostoievsky ou a metafísica de um conto de Guimarães Rosa. Falar em Darcy Ribeiro, Ariano Suassuna, Gilberto Freire, Graciliano Ramos ou Euclides da Cunha, perto deles, é falar em javanês. Pobres médicos-tecnocratas, jogados a um convívio viciado e naturalizado com a indústria farmacêutica, quantas vezes submetidos aos grandes laboratórios que, em nome do lucro e da ganância capitalista, erguem o seu reinado da morte, travestidos de tecnologias arrojadas e mascarados de patentes.

Quando vi estes jovens médicos, feito moleques incultos e incivilizados, vaiando e xingando os seus colegas estrangeiros de profissão, pensei comigo mesmo: esperem, mas não somos todos netos de estrangeiros? Não vivemos em um país que nasceu de um grande encontro de povos e culturas? Não é esta a grande característica do nosso país? Não é a generosidade e a hospitalidade o nosso maior tesouro? A cena brutal e humilhante imposta aos médicos estrangeiros, fez-me imaginar os nossos avós estrangeiros sendo vaiados, forçados a passar pela humilhação do xingamentos e do preconceito, nos corredores poloneses armados pelos “reacionários nacionalistas” da época (filhos também de estrangeiros).

Não devíamos receber estes irmãos cubanos, espanhóis, portugueses, ucranianos, venezuelanos, mexicanos e de tantos outros países, com água de coco e maracatu? Não devíamos recebê-los ao som de violas e rodas de coco? Não deveríamos aplaudir aqueles que quisessem ficar e ajudar na construção da grande nação, da mesma forma que fizeram os nossos avós, que aqui chegando, casaram-se com gente de todas as raças e nos fizeram mestiços e multiculturais? Não somos nós os herdeiros de mil e um povos e de mil uma culturas?

O que aconteceu no Ceará neste triste episódio ficará registrado nos anais da nossa história como o “Dia da Vergonha”, o dia em que o fascismo triunfou sobre a solidariedade e a universalidade que tem marcado, por definição cultural, o espírito do povo cearense e brasileiro.

Acredito que os médicos cearenses, humanistas e éticos, farão uma “Carta de Desagravo”, pedindo desculpas aos colegas estrangeiros que aqui chegaram. Da minha parte, como cidadão cearense, torno público que não compartilho com esta vileza e, em meu próprio nome, peço desculpas aos médicos estrangeiros hostilizados, acreditando que este pedido de desculpas é o pedido de milhões de cearenses e de brasileiros que padecem nos mais profundos sertões, praias, florestas e montanhas, sem médicos e solidariedade nenhuma por parte daqueles que deviam ter como missão o sagrado dever do amor e da solidariedade, acima da sede do lucro e da ascensão social.

Para concluir este meu simples ato de indignação, cito um fato cotidiano. Discutia o grave acontecimento com um motorista de táxi e dizia a ele que iria escrever sobre o assunto. Do alto da sua sabedoria, o motorista de táxi, aconselhou-me: “Escreva não. Um dia o senhor pode chegar em um hospital, cair nas mãos de um deles e eles podem desligar os aparelhos”. Eu que preparava-me para fazer duras acusações contra os “vândalos vestidos de branco”, terminei defendendo-os, quando de pronto respondi: “Nisto eu não posso acreditar! Sei sim, que estes médicos que hostilizaram os médicos estrangeiros, com vaias e xingamentos, agem como moleques, como xenófobos pequeno-burgueses e corporativistas, mas não acredito que as faculdades de medicina do meu país estejam também forjando potenciais assassinos”. Acreditar nisto seria descrer não apenas da medicina, mas da sua deontologia, como princípio e garantia de regulação ética das normas que regulam esta p
rofissão, cunhada, desde os seus primórdios, para proteger e salvar a vida humana.

De qualquer forma, cito o fato, para que estes equivocados “médicos-moleques” saibam qual o conceito que terminaram por cravar no coração das pessoas, com tal espetáculo público de despreparo profissional.

(Escrito por Rosemberg Cariry, cineasta. Fortaleza – Ceará, 27 de agosto de 2013).

Indicado por Fábio Patente.

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4 Comentários

  • Dinay disse:

    Belo texto, de uma lucidez incrível e eu compartilho com os sentimentos deste cidadão Rosemberg Cariry em cada palavra.

  • FABIO disse:

    ISSO QUE ELES MOSTRARAM É A REALIDADE NUA E CRUA DOS MÉDICOS DO BRASIL, A MAIORIA SÃO FILHOS DA CLASSE MEDIA ALTA DO BRASIL, ESTÁ QUESTÃO DE SALVAR VIDA DEPENDE DO SEU DINHEIRO, QUANDO VC TEM DINHEIRO PODERÁ TER UMA CHANCE, O CONTRARIO DEPENDER´DE SUA SORTE, DO SUS E DE SUA CRENÇA OU FÉ. MAS QUEM SÃO OS MEDICOS E DE ONDE VEM ESTES PROFISSIONAIS BRASILAEIROS, VEM DA CLASSE DOMINANTE É SIMPLES, OLHE EM SUA CIDADE, ELES ESTÃO NA POLITICA OU SÃO FILHOS DE POLITICOS, DE EMPRESÁRIOS, POR QUE TER MISERICORDIA DE QUEM Ñ TEM, ELES NASCE E CRESCE EM UMA SOSCIEDADE ORGANIZADA, POR ISSO SÃO TAO ORGANIZADOS E DEFENDEM O DOMINIO TOTAL SOBRE O SISTEMA DE SAUDE, E SÃO CANALHAS, POR Q DIZEM Q Ñ QEREM ATENDER PELO SUS POR Q PAGA POUCO E POR Q ESTA INDIGNAÇÃO COM OS MEDICOS Q IRAM TRABALHAR PELO SUS.

  • Andressa Ribeiro disse:

    “Mais Médicos”. Sim, poderíamos tb importar políticos, policiais, advogados e tudo o mais… mas vamos por parte. Como os usuários do SUS serão prejudicados com essa medida? Da perspectiva da medicina enquanto ciência, o que ela tem a ganhar e perder com esse intercâmbio? O que os médicos brasileiros podem ensinar e podem aprender, não só em termos técnicos, mas eticamente e moralmente com os cubanos? E nós cidadãos, precisamos realmente dos médicos cubanos, ou a compra de aparelhos e mais medicamentos bastaria para resolver consideravelmente a situação? Estamos satisfeitos, de um modo geral, com os médicos brasileiros? Ou precisamos trazer os de fora para compararmos os de lá com os de cá? De todos os problemas do SUS, numa ordem de prioridade, quais devem ser resolvidos imediata e simultaneamente? Não podemos nos iludir, a questão não é a vinda deles. Vindo ou não, a situação não mudará muito. Só mudará, quando todos os envolvidos (médicos e usuários e cidadãos) tomarem uma postura política. Precisamos de mais respostas do que propriamente de opiniões críticas sem fundamentos. As minhas dúvidas: a situação piora com a vinda deles? A vinda deles é incompatível com investimentos estruturais no setor? Por que médicos Cubanos? Se fossem Norte Americanos reagiríamos da mesma forma?
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  • Angela Maria Cruz Santos disse:

    SEUS QUESTIONAMENTOS SÃO SÁBIOS E OPORTUNOS, MAS SERIA ESTA A FORMA DE TRATAR OS COLEGAS? ELE MERECEM RESPEITO TANTO QUANTO OS MÉDICOS BRASILEIROS ESTÃO EXIGINDO. E INFELIZMENTE MUITOS NÃO MERECEM TRATAM E ATENDEM O POVO MAL GANHANDO UMA FORTUNA , AINDA NÃO CUMPREM SUA CARGA HORÁRIA E PARTICIPAM DE ESQUEMA DE CORRUPÇÃO DENTRO DO SUS, COMO TEMOS VISTO EM SÉRIE DE REPORTAGENS.

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